Por: Mário Belo Morgado, Secretário de Estado Adjunto e da Justiça de Portugal
Justiça em Tempo de Pandemia
1. Os tribunais são um pilar fundamental das sociedades modernas, enquanto instrumento de regulação das tensões e conflitos sociais, de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nomeadamente, dos cidadãos mais vulneráveis, de tutela dos mais diferentes tipos de interesses coletivos e difusos, de segurança pública e de desenvolvimento social e económico.
Na sequência de qualificação pela Organização Mundial de Saúde da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como pandemia internacional, e com fundamento na verificação de uma continuada situação de calamidade pública, vivemos desde o passado dia 18 de março num quadro de Estado de Emergência, o qual, também no plano de normal funcionamento das instituições judiciárias, teve consequências muito nefastas.
Na verdade, nos termos da atual redação do art. 7º da Lei nº 1-A/2020, todos os prazos para a prática de atos que devem ser praticados no âmbito dos processos judiciais foram suspensos, com as seguintes exceções: i) processos urgentes, praticando-se os atos processuais, sempre que possível, com recurso a adequados meios de comunicação à distância e, quanto às diligências presenciais, desde que não impliquem a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde; ii) prática de atos presenciais e não presenciais em processos não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através de meios de comunicação à distância; iii) decisão final nos processos em relação aos quais o tribunal entenda não ser necessária a realização de novas diligências.
2. Até ao eclodir da presente crise, as estatísticas da justiça evidenciavam resultados muito positivos no conjunto do sistema judicial, nem sempre percecionados pelos cidadão em toda a sua dimensão, resultantes de toda uma série de reformas que nos últimos anos têm sido levadas a cabo, como a especialização dos tribunais, a implementação de adequados modelos de organização judiciária e de gestão/ monitorização dos tribunais e o franco desenvolvimento da informatização, da desmaterialização processual e da interoperabilidade das diversas plataformas digitais associadas ao sistema de justiça e aos seus diferentes interlocutores.
Estão por determinar o exatos contornos do impacto do atual regime de funcionamento dos tribunais numa lógica de «serviços mínimos», sendo certo que a funcionalidade do sistema de justiça assenta no equilíbrio entre o número de processos entrados e findos por unidade de tempo, equilíbrio que uma vez quebrado exige muito esforço para recuperar.
Desde modo, em adequada harmonia com a necessidade de proteger a saúde dos profissionais e utentes do sistema de justiça, impõe-se retomar gradualmente – embora com brevidade possível – o normal ritmo de funcionamento dos tribunais, tanto mais que, a par da recuperação das consequências da atual paralisação de grande parte da atividade judicial, teremos de lidar no curto prazo com o previsível aumento de litígios decorrentes do impacto de toda uma série de medidas tomadas durante o estado de emergência e de situações críticas relacionadas com a atual conjuntura.
Evitar o colapso da Administração da Justiça e agilizar a tramitação dos processos cujo retardamento incida mais negativamente na urgente recuperação económica do país e na tutela dos direitos de cidadãos mais vulneráveis devem ser os grandes objetivos a eleger de imediato.
O funcionamento – e a funcionalidade – dos tribunais abaixo de determinados limites seria socialmente incomportável, sendo que naquilo que é nuclear o funcionamento do Estado não pode ficar suspenso ou irremediavelmente comprometido por demasiado tempo.
3. Numa lógica global de simplificação e agilização de procedimentos e de racionalização e automatização de meios, são determinantes os contributos de todos os responsáveis e agentes do sistema de justiça para aprofundar e equacionar as medidas organizativas e métodos de trabalho mais adequados para enfrentar os desafios com que nos confrontamos.
Para além da aposta em todo o potencial das novas tecnologias, transição digital e inteligência artificial, bem como de um moderno modelo organizativo das secretarias judiciais já em fase de estudo adiantado, a complexidade estrutural dos próximos tempos não dispensará, porventura, uma abordagem crítica dos atuais paradigmas processuais.
É de rejeitar uma justiça precipitada, em que a rapidez se sobreponha à necessária ponderação ou qualquer tipo de paradigma que não tenha presente que a pacificação social, em última instância visada por qualquer processo judicial, não dispensa determinados rituais e procedimentos potenciadores do acerto e da aceitação das decisões.
Mas, em simultâneo, impõe-se a definitiva erradicação de todos os resquícios do velho arquétipo burocrático e a afirmação de um modelo de proatividade e dinamismo, finalisticamente dirigido a uma aceleração dos tempos processuais consentânea com a obtenção de uma decisão simultaneamente justa e em prazo razoável, como o exige a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.