Juízes africanos
09.02.2020Sousa Jamba
É muito provável que em muitas partes do mundo, onde o continente africano é visto como sendo nada mais do que casos de estudo de má governação e onde as instituições governativas têm pouco a ver com a realidade, o que aconteceu no Malawi poderá ter passado despercebido.
Houve algo inédito no Malawi: depois das eleições, onde a oposição alegou várias irregularidades, o Tribunal Constitucional invalidou as eleições. Ninguém esperava que isso fosse acontecer. Um escritor malawiano escreveu, nos anos 90, que as eleições no seu país eram um teatro caríssimo que, em geral, favorecia o incumbente.
Na teoria, há os três poderes de governação: o legislativo, que gere as leis; o executivo, que governa, e o judiciário, que garante que as leis estão a ser implementadas. Há uma noção que em África isto é ficção; o poder judicial é tão maleável ao ponto de ser quase insignificante.
No Malawi, houve eleições gerais em Maio de 2019; o Presidente Peter Mutharika ganhou as eleições por uma pequeníssima margem. A oposição foi ao Tribunal Constitucional e, para surpresa de muitos, o mesmo achou que as reclamações eram válidas. Sim, os propagandistas do regime insistiram que nunca houve eleições tão justas no Malawi. Várias organizações internacionais emitiram o comunicado de sempre — não obstante as falhas, segundo eles, as eleições eram uma manifestação do desejo do povo do Malawi. O Tribunal Constitucional do Malawi analisou tudo rigorosamente e concluiu que houve falhas altamente significantes no processo.
O Presidente Peter Mutharika, altamente enfurecido, insistiu que isto era uma grande afronta à democracia, que o Malawi agora já não tinha um sistema judiciário digno desse nome. O resto do continente africano aplaudiu a decisão do Tribunal Constitucional do Malawi. Em 2017, muitos africanos aplaudiram o juiz David Maraga, do Tribunal Constitucional do Quénia, que declarou que invalidou as eleições naquele país africano.
Na Zâmbia, há uma canção muito popular sobre a juíza Irene Mambilima, antiga presidente da Comissão de Justiça. A juíza Irene Mambilima também já foi chefe da Comissão Eleitoral. Na canção, o músico diz que sonha ter uma mulher com a beleza, inteligência e integridade de Irene Mambilima. Houve várias ocasiões em que a juíza Mambilima tomou decisões que não alinhavam com os interesses do Executivo do seu país.
O Malawi teve um ditador típico da África pós colonial — o médico Hastings Kamuzu Banda. O Doutor Banda, que passou a ser presidente vitalício, esteve no poder de 1964 a 1994. Quando o Malawi se tornou independente, em 1964, havia um sistema judiciário sólido, ajudado em parte por certos peritos britânicos. Muitos pertenciam àquela geração de intelectuais africanos como o juiz Benedito Kiwanuka, do Uganda, que era um grande estudioso do direito. No Uganda, o grande ditador Idi Amin ficou tão irritado com o juiz Kiwanuka, que eventualmente organizou a sua eliminação física. No Malawi, o Doutor Banda mandou o juiz Ortom Chirwa e a esposa Vera para o exílio. O casal foi raptado no leste da Zâmbia e passou 13 anos num confinamento solitário; o juiz e a esposa passaram todos estes anos em celas que se seguiam sem saber que estavam próximos.
A um certo momento no Malawi, a independência do poder judiciário tinha deixado de existir. Se o presidente Banda insistisse que alguém deveria ser preso, a sua palavra era sempre a última. A um certo momento, quando o presidente Banda, já bastante velho, passava às vezes seis meses a viver num dos melhores hotéis de Londres, John Tembo, tio da sua companheira oficial, a senhora Cecília Kadzamira, mandava em tudo. Havia casos de cidadãos serem declarados inocentes e postos na cadeia depois de instruções vindas do Executivo. A presidência do Dr. Banda até tinha as suas cadeias privadas. Há muitas obras escritas por intelectuais do Malawi a analisar como é que o poder veio a ser controlado por um só homem e pessoas à sua volta.
Em geral, pelo menos na África anglófona, tem havido transformações marcantes nos sistemas judiciários; os juízes estão a afirmar-se com muita seriedade. Uma das razões é que em muitos países os juízes são nomeados por comissões e não dependem completamente de nomeações do Executivo. Há, também, muitos juízes com longuíssimas carreiras que tomam decisões esperando ter um papel digno e louvável na história. No Quénia e na Zâmbia, há vários casos que hoje figuram como casos de estudo de violação de direitos; em que os tribunais sistematicamente violaram as leis para agradar ao Executivo. Muitos juízes de então gostariam que fossem apenas rodapés nestes casos; juízes como David Maraga e Irene Mambilima são hoje recebidos com todas as honras nos encontros de estudiosos de direito da comunidade britânica.
Depois há, também, o processo da globalização. O papel do direito na sociedade é um tema que tem preocupado muitos intelectuais. No caso do continente africano, há cada vez mais a noção de que só pode haver verdadeiro desenvolvimento num clima onde o Estado de Direito é respeitado.
Fonte: Jornal de Angola
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